terça-feira, 16 de dezembro de 2008

A MULHER QUE IMITAVA DEUS!

Um dia, ainda bem pequeno, vi-me na casa de uma mulher. Uma casa como qualquer outra, mas cheia de vida. A cozinha pequena, porém poderosa, tinha sempre um cheiro de guloseimas; o quintal tinha um aroma de mato molhado e muitas plantas que produziam infinitas miçangas usadas para confeccionar diversos enfeites. Tinha também uma imensa trepadeira que abraçava todo o muro com suas minúsculas flores rosas,acompanhadas pelas pontuais abelhas em busca do néctar diário.

As minhas visitas a esta casa foram tornando-se mais freqüentes. Descobri que eu não era o único visitante. Eram muitos que por ali passavam ou moravam nos inúmeros quartos que exalavam um ar acolhedor.

Com o passar do tempo percebi alguns sons que intercalavam em batidas fortes, agudas e graves. Não conseguia definir de onde vinham, mas eram rotineiros.

Certo dia, a curiosidade me instigou a seguir as batidas. Fui para o quintal e percebi que lá bem no fundo uma luz fraca poderia ser a resposta para o que eu procurava. Cheguei mais perto e senti que o barulho ficava mais forte. Aproximei devagar até chegar ao local onde vi uma mulher sentada em uma cadeira de madeira sobre o chão colorido por pedaços de tecidos de todos os tamanhos. Observei a mulher por um tempo, sem que ela percebesse a minha presença. Continuou trabalhando com tamanha dedicação que só me viu quando virou-se para pegar uma ferramenta. Estendeu a mão em minha direção e exigiu o toque com a minha. Seus dedos polegar e indicador estavam tingidos de verde cujas unhas tinham uma coloração avermelhada de algum corante.

Após o cumprimento ela voltou-se ao trabalho, de cabeça baixa e com o lábio inferior protuberante, olhando fixamente para os seus afazeres, perguntou sobre minha mãe, meu pai e minha irmã. Fez outras perguntas das quais não me lembro, mas certamente respondi todas. Ela usava um vestido marrom impossível de definir, no entanto, recordo que era marrom.

Perguntei o que estava fazendo. Ela disse que fazia flores. Fiquei meio confuso e surpreso por encontrar a primeira pessoa - além de Deus - que fazia flores. Até mesmo porque eu só havia visto as flores de Deus, mas o Deus propriamente dito, nunca tinha visto!

Estava eu diante de criador e criatura enchendo a cabeça de perguntas e o que saiu foi somente uma afirmação:
“ Eu pensei que quem fazia flor era somente Deus!”
Ela respondeu sem me encarar:
“E você está certo! Eu não faço flores. Eu somente copio as que Deus faz!”
Ainda mais confuso exclamei:
“Então você faz melhor do que Ele, porque suas flores duram para sempre!”
A mulher então, parou o que estava fazendo, olhou-me e depois de um tempo disse:
“Ninguém é melhor que Deus. As flores Dele têm cheiro, são bem delicadas e não duram para sempre. Aí está o segredo! Eu somente copio o formato e a imagem das flores de Deus. Somente isso! E assim somos nós. Sabendo que nada dura para sempre devemos aproveitar o quanto pudermos do presente, do mesmo modo que fazemos com as flores de Deus. Olhamos, cheiramos, tocamos, fazemos enfeites. E quando elas morrem, as colocamos de volta no canteiro para que virem adubo e dêem energia para as outras flores que virão. E o mais importante é que não há flor igual à outra. Todas são únicas! As minhas flores também são assim.”

Um silêncio tomou conta do lugar que somente hoje posso até chamar de ateliê, mesmo sendo rústico. Mas a rusticidade e suas características particulares é que fazem com que determinado local se transforme em ateliê.

Aquelas palavras me marcaram! Voltei a visitar a mulher por incansáveis vezes e com o tempo aprendi a chamá-la de vovó. Não me lembro a partir de quando, mas todas as vezes que tomava bênção eu apertava uma mão enrugada e molhada, com cheirinho de tempero e comida quase pronta.

O tempo passou, a mulher mudou-se. Eu também me mudei e as visitas tornaram-se menos freqüentes, inversamente proporcionais aos cheiros, às imagens e palavras que são ainda nítidos.

Hoje esta mulher certamente confabula com Deus sobre o processo de fabricação de flores. Ambos têm muito que discutir, pois eu nunca vi cópias tão perfeitas das flores de Deus como as feitas por ela.

A mãe severa, a avó protetora e a bisavó acolhedora resumem numa só mulher a força de uma pessoa dedicada, talentosa e honesta. Tive o privilégio de participar dos seus últimos dias, da melhor e da pior maneira, desde o toque macio das mãos até a aflição do padecer.

Nem mesmo suas flores fabricadas irão durar para sempre, nem os seus frutos que confirmam o ciclo da natureza de estes virem depois das flores! As lições, sim, são eternas! Estas vêm embrulhadas em pedacinhos de saudades umedecidos por lacrimejos inevitáveis.

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